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terça-feira, 24 de março de 2020

Entrevista a Jorge Rodrigues | Antigo futebolista conta a história da sua vida

TEXTO: JOÃO CARLOS LOPES | FOTO DE CAPA: MÁRIO EUGÉNIO | RESTANTES FOTOS: DR

“Foi por minha culpa que não singrei no futebol”

Jorge Rodrigues é um antigo jogador das camadas jovens da AD Fafe e Vitória de Guimarães, clube com quem assinou contrato profissional, passando depois por outras colectividades. Teve tudo para singrar no futebol, mas as vicissitudes da vida e algumas situações que o deixaram vulnerável, acabaram por o levar por outros caminhos, dos quais não se orgulha. Esteve muito perto do abismo, mas ainda teve forças para voltar e viver, da melhor maneira possível, o resto da vida. Afinal só tem 52 anos. Jorge é um exemplo em três dimensões para aqueles que sonham e mergulham no mundo do futebol: é possível lá chegar, é possível perder tudo quando não se toma as opções certas e é possível ir ao inferno e voltar. Nada será como se fosse no tempo em que tinha que ser, mas a vida continua, assim como o futebol, nos Veteranos da UD Fafe A60, ainda que tenha sido forçado novamente a parar, mas por outros motivos. Há-de regressar aos relvados para conviver e ter muitas alegrias com os companheiros da UD Fafe, como regressou à vida quando já o davam como “morto”. Jorge Rodrigues é um exemplo em vários capítulos nas é o próprio que nos diz para seguirmos a vida real.     

Nome: António Jorge Rodrigues 
Idade: 52 anos 
Profissão: Fiel de Armazém 
Local de nascimento: Silva Porto, Bié, Angola.   
Clubes: AD Fafe (iniciados); Vitória SC (iniciados a Juniores); Vitória SC 1986/87 a CD Aves (1988/99), Vitória SC (1988/99); CD Celoricense (1989/90); CRP Delães (1990/91 a 1991/92; Neves FC (1992/93); Atlético Cabeceirense (1994/95); ADC Outeiro (1995/19); GD Silvares (1996/97) e UD Moreirense (1997/98 a 1998/99). 

Fale-nos um pouco da sua infância

- A minha infância resume-se à vinda de Angola quando rebentou a Guerra Colonial. Chego a Fafe juntamente com a família, como refugiados, o meu pai como retornado uma vez que era natural de Fafe. Ingressei na 2.ª classe e foi um tempo de adaptação onde me integrei sem qualquer problema uma vez que a habilidade com a bola no recreio despertou a atenção dos demais. Além disso, era bom aluno e responsável, tendo sempre facilidade em criar amizades.    

Onde e com que idade começou a jogar futebol?

- Nas férias de Verão surgiam os torneios de futebol para miúdos, na altura conhecido como “Torneio da Câmara” (8-10 anos). Joguei inicialmente pela Praceta 1.º de Maio (Torralta) cujos treinadores eram Os irmãos Zé e Óscar que tinham a alcunha de “Pretos”. 
   
Teve sempre vocação para o futebol ou praticou outros desportos?

- A partir do momento que comecei a jogar nesse Torneio não mais me desliguei do desporto, mantendo-se sempre na escola. Morava ainda no antigo asilo da Rua Montenegro, juntamente com outras famílias de “retornados” onde além de futebol jogávamos “Minibasket”, isto porque havia na rua uma jogadora desta modalidade que representava o Sporting de Braga e que juntou vários miúdos, fazendo uma equipa que chegou a participar em Torneios, recordando-me que um deles foi na Póvoa de Lanhoso.      

Ainda jogou mais vezes no “Torneio da Câmara”? 

- Nos anos seguintes o treinador era o Sr. Inácio Matos que tinha como adjunto o Sr. Inácio Novais, e jogávamos pelos Amigos do Café Avenida que pouco depois passou a ser a equipa dos Kapas da Feira Velha. Sem descurarmos a escola, lá nos mantínhamos juntos e vencedores. Nessa altura fiquei a ser conhecido por ter um pontapé forte, chutava bem e de força.   

Chegou aos iniciados do Fafe com alguma naturalidade?

- Depois desses torneios sim. Cheguei aos iniciados do Fafe na época de 1979/80, sendo o treinador o Professo Zeca Barros. Apesar de ser muito novo já participava em vários jogos. Só na época seguinte, com o treinador Ricardo Jorge Barros (bancário), em que tínhamos uma grande equipa que se bateu de igual para igual com o Vitória SC e com o Sporting de Braga, sendo certo que nos anos anteriores contra estas equipas sofria goleadas. Na verdade, chegamos a empatar com o Braga e a vencer o Vitória.       

Quando se dá o seu ingresso no Vitória SC?

- Fui abordado para ingressar no Vitória SC quando ia decorrer a fase de Campeão Nacional. Logo no primeiro ano fui campeão distrital e continuei a ir à Seleção da AF Braga onde tinha ido quando jogava no Fafe. No Fafe era médio esquerdo, o Vítor Nogueira o defesa esquerdo e o Castro Leite o extremo esquerdo. Ingressamos todos no Vitória, uma ala esquerda completa. No entanto eu e o Vítor fomos adaptados a defesas centrais, eu a líbero e ele de marcação. Joguei nessa posição durante a minha caminhada até aos juniores, tirando alguns jogos que fazia pelos seniores a trinco quando era chamado para jogar na Taça AF Braga e com o técnico Raymond Goethals era chamado muitas vezes, mesmo para fazer treinos de conjunto. 

É verdade que podia ter ido para o Benfica?

- Num jogo para a Taça Amizade, entre o Braga e o Vitória fui chamado para marcar o Reinaldo, que tinha vindo do Benfica para os bracarenses. Eu era um miúdo e muito nervosinho a marcar aquele jogador grande e forte que para mim ainda parecia maior. Superei-me, fiz um grande jogo que chamou a atenção do Neno que tinha nesse jogo sido apresentado como jogador do Vitória - emprestado pelo Benfica. Como ainda era o meu primeiro ano de júnior perguntou-me se não queria ir para o Benfica pois trazia “olhos” para ver um bom central, mas fiquei no Vitória. 

Quando júnior o meu treinador era o Professor Manuel Machado e fazia jogos pelos seniores cujo técnico era o já saudoso António Morais. Subi a sénior no ano seguinte com Marinho Peres e Paulo Autuori a treinadores, completavam a equipa técnica o preparador físico Pina de Morais, como preparador físico e Alberto Torres como adjunto. 

O serviço militar complicou-lhe a vida?

- No ano seguinte fui emprestado ao Desportivo das Aves. Nesse ano veio o serviço militar. Estive no Estoril, Atlético – Esatava lá o Edmur que tinha jogado no Aves. Mas foi por pouco tempo, pois fui cumprir o resto da tropa em Santa Margarida. Tinha o Sporting de Tomar mais perto, onde fui à experiência, mas como ponta de lança que era a lacuna que existia no plantel. Acabei por agradar. Na altura esteve lá um chileno à experiência que também ficou. Contudo, devido ao serviço militar estava limitado para treinar. Quando terminei a tropa vim novamente para o Norte e como ainda tinha contrato com o Vitória fui à apresentação. Fiquei espantado com a quantidade de jogadores que vi. Eram 61, pois já se estava a fazer a Equipa B.       

O que aconteceu a seguir?

- Acabei por rescindir e fui jogar para o CD Celoricense na 3.ª Divisão Nacional. Diverti-me imenso nessa época, onde jogávamos bom futebol. Nessa temporada comecei a ponta de lança e fazia dupla com o experiente Bábá, mas passei para trinco. Recordo-me que fizemos furor na Taça de Portugal, onde atingimos os quartos de final, onde fomos derrotados pelo Gil Vicente.   

Marcou muitos golos durante a sua carreira?

- Marquei muitos golos durante a carreira, mas o que mais me marcou foi um que obtive contra o Macedo de Cavaleiros, pois estava muita gente de Fafe a ver esse jogo por causa da confusão “Fafe/Famalicão/Macedo de Cavaleiros”. Foi uma jogada linda que culminou com um grane golo da minha parte.  Fiz muitos outros golos, pois também marcava livres e penaltis e era bom cabeceador na área, aproveitando a altura e boa impulsão.  

E o pior momento? 

- O pior momento está ligado à “revolta” e “frustração”. Mas foi por minha culpa que não singrei nem fui mais longe na carreira. Na altura tive uma boa proposta de um bom clube que agora não vale a pena divulgar. Contudo, houve terceiros a intrometer-se e a estragar tudo e a contratação acabou por não se concretizar. Não fiquei rancoroso nem com “raiva” dessas pessoas, mas zangado comigo próprio, pois dava azo a que essas pessoas pensassem que eu levava uma vida de boémia. Houve ainda outras situações que me abalaram. Numa delas, quando no Vitória, estava pronto para ir para estágio contra o Groningen, o Nené recuperou e fui para casa. Contra o Atlético de Madrid pensei mesmo que ia ao Vicent Calderon, aconteceu a mesma coisa. Tirando as lesões estes foram dois dos piores momentos da minha carreira.   

Porque nunca jogou como sénior na AD Fafe?

- O assunto atrás invocado também foi um dos motivos porque nunca joguei na AD Fafe. Não respeitava as normas e não parecia responsável para a profissão que tinha. No entanto, por todos os clubes por onde passei sempre respeitei os contratos internos e dei o meu melhor. - Quando estava no Delães jogamos em casa contra o Fafe que era a equipa do ano do Rui Costa. O meu treinador era Cartucho – antiga glória da AD Fafe. O jogo correu-me bem, penso que fui o melhor em campo para o jornal a Gazeta dos Desportos – “Troféus Tintas Lacor”. No final do jogo os directores do Fafe disseram para os directores da minha equipa: “o Jorge é o gajo que fecha os bares todos de Fafe, ao que o Cartucho respondeu, com o aval do presidente: “mas é o gajo que dá o litro tanto nos treinos como nos jogos, é assim que eu gosto”. No futebol, muitas vezes, tem que se engolir sapos do tamanho do mundo e eu tinha a boca pequena.       

Porque acha que nunca singrou verdadeiramente no futebol?


- Isso deveu-se à capacidade de ter chegado depressa demais onde queria. Contudo, não cimentei bem os alicerces para me poder sustentar com o que fazia nas horas que não tinha treinos ou jogos. Deixei-me levar por uma vida errante que nada tinha a ver com a de um jogador de futebol. Considero que fui exemplo pela positiva para muitos de que era possível chegar lá e pela negativa para, num aviso, pois se fizerem o que fiz nunca lá chegam. 

Apesar de ser mais mulato sempre foi conhecido como “Jorge Preto”. Alguma vez sentiu isso como racismo?

-  Como era mais escuro que os outros "Jorges", pois cresci com alguns, era mais fácil identificarem-me por “Jorge Preto”. Nunca levei isso para uma questão de racismo, nem quando ia aos campos dos adversários levava a peito. Até me dava gozo porque pensava para mim que estava a jogar bem e era isso que provocava a ira do opositor. Saía sempre contente do campo porque sabia que tinha feito a minha parte.  
  
O que lhe tem dado a vida?

- Depois de um trajecto sem rumo e sem filosofia de vida, arranjei forças para mudar e regressar ao trilho de onde me tinha desviado, deixei de sobreviver e recuperei a alegria de viver. Comecei a gostar de mim novamente e recuperei a minha família. Entretanto os meus pais faleceram, mas ainda saboreei por algum tempo a alegria de me verem bem. Fazendo as coisas certas a vida pode dar-nos tudo. Assim vivo o dia a dia com a fé de que o próximo dia seria melhor ainda.  

Ainda joga futebol? 

- Sim, o bichinho do futebol fez-me voltar a dar uns toques na bola. Comecei nos veteranos do Vitória SC e vim depois para os Veteranos da UD Fafe Anos 60, mas encontro-me temporariamente inactivo por ordem da equipa médica e técnica.   

Arrepende-se de alguma coisa que tenha feito na vida? 

- Arrependo-me de não ter sido mais responsável comigo mesmo e não me ter respeitado, para ter respeitado as minhas conquistas. Claro que estou profundamente arrependido e também de muitas vezes ter envergonhado a minha família e amigos. 

Se fosse agora o que fazia diferente?

- Como o tempo não volta atrás e o passado e o passado ensina-nos quanto aos erros cometidos, fazia o que estou a fazer neste momento: a viver a vida e ser útil e produtivo para a sociedade. 

Como é o Jorge Rodrigues de agora? 

- É, muito sinceramente, mais consciente, mais honesto consigo mesmo, mais sentimental, mais alegre, com mais vontade de viver a vida tal como ela é. Mas vou ser sempre o Jorge “Preto”. Voltei, voltando à vida real. 

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