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quinta-feira, 5 de setembro de 2019

João Vieira Mendes cumpriu os 171 km do Ultra Trail do Mont Blanc | O TESTEMUNHO NA 1.ª PESSOA

"ULTRA TRAIL DU MONT BLANC – UTMB

"Foram 8 meses de treino intenso num “plano” cozinhado durante 2 anos"

✅ 36h56min / 171KM / 10.000D+ / 415.ª posição (2700 Total) 🏅

Ainda parece um pouco irreal, mas é verdade: consegui cortar a meta mais desejada do Trail Running mundial!! 

Foram 8 meses de treino intenso num “plano” cozinhado durante 2 anos…

Para quem tiver paciência, aqui fica o resumo mais do que alargado!

Quando, em 2017, consegui concluir os 115km do MIUT, jurei que nunca mais fazia uma prova de 100km...

Uma semana depois as dores passam, a lembrança do sofrimento esvai-se e dei por mim a indagar que, se fizesse mais 2 provas de 100km nesse mesmo ano, teria os 15 pontos necessários para concorrer ao UTMB de 2018. De repente, um sonho que sempre pareceu inatingível parecia exequível… Será?

Em Junho dou por mim a fazer os 100km do Oh Meu Deus e em Outubro os 112km do UTAX.

15 pontos conquistados! Era impensável uns meses atrás!...

Idealmente, não seria sorteado para 2018 (seria cedo demais), mas isso duplicaria as minhas probabilidades de sorte para 2019 e, na pior das hipóteses, tinha entrada garantida em 2020, desde que renovasse os 15 pontos necessários.

O plano correu tão bem que sou rejeitado no sorteio para 2018, e em Janeiro último surge a grande notícia: vaga garantida para o UTMB 2019!

“E agora???!!! 

Eu preciso de ajuda… É uma oportunidade única e não quero desperdiçá-la, quero ir com a certeza de que vou com a melhor preparação possível e sozinho não faço ideia de como o fazer… Não quero correr o risco de desistir e ficar na frustração de não saber se foi porque não me preparei bem, ou simplesmente porque não fui capaz…”
Foi aí que surgiu a Runtreino. Na hora certa, a orientação da Ester Alves em poucas semanas pôs-me com sensações físicas e índices de evolução que eu não imaginava ter.
Em Abril faço novamente o MIUT, conseguindo concluir 2h30min antes do tempo que tinha feito em 2017…

Completo o TranspenedaGerês (43K), também em Abril, Riaño Trail Open (46K) em Junho e Ultra Sierra Nevada (62K) em Julho. As provas que fiz de preparação.
De repente, reparo que o meu ranking ITRA, que era fraquinho, se mantém fraquinho, mas tinha passado de 528 para 584. Em meio ano. Nos 2 anos anteriores tinha evoluído 20 pontos…

Conclusão: basicamente não sabia treinar.

Foram 8 meses de evolução, numa experiência que adorei com a Runtreino e onde aprendi muito, mas muito, e que iam dando alento para que pudesse estar à altura de tremendo desafio…

O primeiro grande objectivo que tracei mantinha-se: conseguir terminar. Já era a grande Vitória. O segundo grande sonho traçado seria tentar terminar em menos de 40 horas. Difícil, pois mais de metade dos atletas termina após as 40 horas e centenas no limiar do tempo limite, 46h30min. Mas, com a evolução positiva dos treinos, e os resultados das provas de preparação, foi se instalando o “bichinho” de que talvez, num dia perfeito, conseguisse aproximar ou superar as 35 horas. Mas, a poucos tive coragem de o revelar, não queria parecer que estaria a subestimar tamanho Monstro, porque em momento algum o fiz…

Todo este processo, a possibilidade de alinhar na prova mais importante do mundo, na beleza ímpar dos Alpes, naquilo que seria o fechar de um ciclo, era algo que acontece uma vez na vida… Por isso, fiz questão de levar a minha Família toda. Toda? Não… Os que puderam, porque tenho a sorte de ter uma Família chegada com dezenas de elementos, em que os Primos são como Irmãos! Mas era uma "Scuderia" de 9 elementos! Com a presença deles, metade da prova já estava feita!
E finalmente chegava o grande dia! A presença da Família fez com que tivesse andado os dias anteriores calmo, abstraído quanto baste do que tinha pela frente. Por isso, fui bastante tranquilo rumo ao desafio.

O arrepiante momento da partida ficou marcado por um batismo chuvoso, o que refreou os ânimos dos mais de 2500 atletas que se aglomeravam para a aventura de uma vida. Algo que criou uma tensão adicional. Para além da voz do speaker, o silêncio imperava entre a multidão.

A partida é verdadeiramente emocionante

A partida é verdadeiramente emocionante e espelha o que acontece por todas as localidades por onde passamos durante toda a prova: um ambiente incrível com milhares de pessoas a vibrar com cada atleta que passava! Não foi novidade para mim, pois já tinha participado no OCC em 2017 e acompanhado o UTMB do Nuno Fernandes nesse ano, mas vivê-lo na primeira pessoa é único!

A estratégia que tinha estava bem estudada e passava por nunca entrar em frequências cardíacas eufóricas, mas tentar progredir o máximo possível durante a primeira noite. Quem mandava era a frequência cardíaca. E fui progredindo bem, chegando a Saint Gervais (21km) para perceber que a “Scuderia” tinha percebido o plano de acompanhamento da prova e lá estavam eles a dar apoio.

 Aqui, em Saint Gervais, de relance, pois é tudo muito rápido ainda.

Aos 31km, em Les Contamines, ainda ia bem, e tenho o segundo retemperador encontro com a equipa de apoio, mas o último até Courmayeur, aos 80Km. Eram 22h30. Ia ser uma noite dura e solitária. Não gosto particularmente de correr de noite, mas faz parte.

A subida até Croix du Bonhomme foi feita com ótimas sensações, mas progressivamente fui sentindo alguma quebra física que se agravou particularmente na subida ao Col de la Seigne, que me custou particularmente mais. De cada vez que via a interminável linha de luzes de frontais a fugir montanha acima pensava nos kms que ainda tinha até à meta… Mas a minha próxima meta era Courmayeur. E essa não era assim tão longínqua.

A transposição do Col de la Seigne marcava a passagem para território italiano. Nesta fase, exceptando a “pequena” subida até ao Col des Pyramides Calcaires, onde tive um curto renascimento, toda a zona desde Lac Combal até Courmayeur foi feita em esforço… maior do que seria suposto nesta altura da prova, penso eu. Em Lac Combal passo particularmente mal. Íamos com 70km… Estava frio, o abastecimento era ao ar livre, aos 2000 metros de altitude, pelo que arrefeci bastante, e saio de Lac Combal a ver os primeiros ligeiros clarões do dia (finalmente!), mas a vestir o impermeável e calçar as luvas. Não me pareceu um bom sinal, mas, após reiniciar atividade, reestabeleceu-se o equilíbrio térmico.

Na descida para Col Checruit, em pleno trilho no meio do nada, o impensável: 3 “gajos” a tocar uma grande “malha” de Blues! Ainda era cedo para estar com alucinações... Apeteceu-me ficar ali, mas acenei-lhes positivamente e segui caminho. Uns metros mais tarde, confirma-se a minha insanidade: um grupo a montar uma harpa! “A noite não te fez bem, o que vale estamos a chegar a Courmayeur” – penso eu. E assim foi, às 8h30 estava em Courmayeur, bem dentro das previsões que tinha feito. Soube bem rever a Família que já lá estava à minha espera!
Senti-me amolecer, mas não me demorei muito. Comi bem, troquei de camisola e confirmei um mau cenário. Estava com 2 bolhas gigantes na parte interna do calcanhar, em ambos os pés. Há que trocar de sapatilhas, mas as Hoka dão-me problemas praticamente no mesmo sítio, pelo que teve que entrar em campo o 3.º guarda-redes – umas Kalenji

Saí de Courmayeur desgastado, mas a meter o “modo paisagem” e convencido que ia revitalizar, pois o dia começava e a parte mais bonita do percurso vinha aí – a travessia dos refúgios e a subida ao Grand Col Ferret. Estava um dia lindo, o que me enchia de motivação, apesar de saber que o calor ia ser um inimigo a temer. Passados uns kms confirmei que, felizmente, o problema de bolha dos calcanhares tinha desaparecido e estava convencido que ia ser salvo por umas Kalenji.

Depois de uma dura subida estava finalmente no Refuge Bertone. E confirmava-se: a travessia dos refúgios é absolutamente incrível, sempre na quota dos 2000 metros de altitude e com o Val Ferret, lá em baixo, a separar-nos do Gigante Maciço do Monte Branco, expondo vários glaciares mesmo ao nosso lado… 

O percurso dá para correr e foi exactamente nesta parte em que as boas sensações físicas regressaram, o que me permitiu correr praticamente todo o trajecto até ao Refuge Bonatti. Depois da descida a Arnouvaz, seguia-se o empeno monumental da subida ao Grand Col Ferret. Foi dura, muito dura, mas adorei fazê-la, e fi-la com boas sensações, apesar de serem 14h e estarmos no pico do calor. E a perspectiva lá do alto é extraordinária! 

Entrava agora em território Suíço e seguia-se a famosa descida corrível de 20km, que tinha a primeira paragem em La Fouly. Sabia que em La Fouly ia estar toda a família, especialmente as pequenitas pela primeira vez, pelo que ansiava por lá chegar. Mas, antes de chegar, grande surpresa: no meio do nada, a Crosscall coloca o vídeo de incentivo que os familiares e amigos podiam enviar aos atletas, momento em que me apercebo que havia um para mim! Foram 30 segundos de recarregamento de energia positiva que passou diretamente para o corpo. Impagável!

Cheguei a La Fouly com 21h50min de prova e com ótimas sensações, apesar dos mais de 110km que já levava comigo.

Em La Fouly, confirma-se, estava lá toda a “Scuderia”! Momentos que me fizeram ficar retido bem mais tempo do que ficaria, mas que me permitiram sair de lá com 10x mais ânimo.

É no trajecto até Champex que se dá a reviravolta numa prova que estava a correr na perfeição. Começo a sentir que estou a formar bolhas na planta do pé, mesmo na zona frontal de apoio, de ambos os pés.

Ainda faltava aquilo que são praticamente 3km verticais

Em Champex decido ir à enfermaria, mas opto por apenas colocar creme anti-bolhas e seguir caminho, até porque já tinha estado um bom tempo em convívio com a “Scuderia” e não havia tempo a perder, pois ainda faltava aquilo que são praticamente 3km verticais, cada um aumentando de grau de dificuldade…

Até Trient foram 17km, com passagem em bom ritmo no topo do primeiro km vertical, em La Giéte, mas onde as bolhas se foram agravando cada vez mais, ao ponto de já não conseguir correr a descer, tendo uma das bolhas rebentado 1 a 2 km antes de chegar a Trient, o que me condicionou significativamente a progressão. Vou directo à enfermaria onde me fazem um tratamento de choque com eosina, com a promessa de que tudo seriam rosas, depois disso. Nesse momento, entram as Hoka em campo, pois, nessa altura, preferia prejudicar os calcanhares do que agravar o estado lastimoso da planta do pé…

Saio de Trient determinado, mas apreensivo, pois ainda faltavam quase 30km. “Não acredito que bolhas nos pés é que vão ditar a minha desistência… Não, não pode ser…” Apesar de ligeiramente melhor, as dores continuavam claramente presentes. Se nas subidas a coisa corria bem e conseguia impor um ritmo praticamente igual ao que imporia sem bolhas, nas descidas as dores eram horríveis, a cada passada… e dei muitas! A dura subida a Les Tseppes (2º km vertical) foi-se fazendo a ritmo aceitável, mas não conseguia correr a descer o que, naquele momento, me frustrava bastante, porque, apesar de obviamente desgastado, sentia-me capaz fisicamente, mas perdia bastante tempo nas descidas.

Ao mesmo tempo também estava ciente que ninguém vai para uma aventura de 171km na montanha mais agreste sem esperar adversidades e já tinha sido muito bom ter apanhado um clima quase perfeito, não ter caído nenhuma vez, não ter feito uma entorse, e ter tido 110km "imaculados”. Foi mais fácil assumir que ia ter que lidar com aquilo até ao fim.

Chego finalmente a Vallorcine. 2 da manhã de uma segunda noite de prova. 153km nas pernas. 2 pés desfeitos. E ainda falta partir 1000m de D+ de pedra até ao topo de mais uma subida a Tête aux Vents. A pior. A mais dura.

“É a última!”

Faço-me ao caminho e até ao Col des Montets impus um ritmo bem aceitável, pois a inclinação e o terreno deixavam… Aí chegado, leva-se o grande estalo: uma fila de luzinhas de frontais verticalmente colocadas sem fim, montanha acima! “Siga, é o que tiver que ser…”
Nesta altura já nem horas tinha no relógio, estava completamente em modo “wild”, sem saber quanto faltava para acabar, ou há quanto tempo estava a subir… “Já estou por tudo, quando chegar lá a cima, cheguei…”

O terreno era bem pior do que imaginava, e a subida verdadeiramente interminável. Patamares de pedra que tínhamos que galgar àquelas horas da manhã, com 160km nas pernas. É um final de prova verdadeiramente torturante. Mas o certo é que, devagar, mas sem parar, lá vi um aglomerado de pedras... Estava no Tête aux Vents. Finalmente! 

Apesar da felicidade, senti que a subida tinha esvaído toda a réstia de forças que ainda tinha, sentia-me exausto, pela primeira vez na prova…

Daí para a frente o terreno mantém-se duro, só pedra e percorro o que me pareceram claramente 3 kms quando vejo 2 controladores no meio do nada, dando como garantido: “Estou em La Flégere!”

Olho para o cartaz lá colocado: Tête aux Vents 2150m altitude. “Não acredito, só agora é que cheguei ao Tête aux Vents…” Um murro no estômago àquela hora! Ainda para mais porque o verdadeiro trajecto até La Flégere revelou-se como 3,5km técnicos, massacrantes e intermináveis, verdadeiramente intermináveis… Mas, a muito custo, La Flégere apareceu… Eram 5h40 da manhã e agora já só faltavam 8km, nem que fosse a rebolar, até Chamonix!

A descida começa agressiva, mas rapidamente suaviza, mas naquela altura já nada é suave. “Agora é rebentar as bolhas até lá baixo, já não há nada a perder!” Felizmente o terreno, em boa parte, permitiu correr desde que suportasse as dores e acabei por atravessar todo o bosque final e apanhar o estradão final bem mais depressa do que contava. Nesta altura já não parava de correr, corria seguido, mais do que superar a prova, queria que o calvário das dores nos pés terminasse o mais depressa possível!
E finalmente as ruas de Chamonix chegam, já de dia, e vejo a Liliana que me acompanha nos últimos 500 metros. Não podia ser de outra maneira, sem o apoio dela durante a prova, tudo tinha sido bem mais complicado.

E estava superado, tinha conseguido, estava na meta mais bonita do mundo!

✅ 36h56min depois…

✅ No 415º lugar entre os quase 2700 que partiram de Chamonix. 1000 desistiram…

Não posso passar sem agradecer devidamente isto…

E o primeiro agradecimento vai direitinho para a Liliana, tanto pelo seu incansável apoio durante toda a prova, como pela paciência que teve para com as horas fora de casa para que eu me conseguisse preparar devidamente para esta “loucura”. 

Obrigado às minhas pequeninas e ao Pedrinho que, pela primeira vez, e na mais importante, viram o papá (e tio) durante a prova, o que para mim foi um recarregar de baterias sem igual! 

Obrigado a toda a “Scuderia” que me acompanhou, os meus pais, a minha irmã e a minha tia Quica. 

E um obrigado especial ao Rui Lobo (tu sabes porquê!)

Obrigado a toda a restante Família que não pôde ir, mas depois vibrou e acompanhou como se estivesse lá! Sempre espetacular ver os vossos comentários durante a prova!

E obrigado por aquela micro-recepção no aeroporto, que para mim foi Macro! E aí tenho que agradecer especialmente a um “tolinho” que fez 400km para me vir dar um abraço no aeroporto… Quando eu penso que já não é possível nutrir mais carinho por ti, tu consegues sempre surpreender, Ricardo Fernandes! Obrigado!

Obrigado a todos os meus amigos que vão sempre dando conta de quão “louco” é preciso ser, em especial a todos os que enviaram vídeos e mensagens de incentivo!

Um obrigado especial ao Sérgio Rodrigues aka Tiques aka Homem sem Facebook, sempre com paciência para analisar as minhas mazelas... "O João está me a ligar? Lesionou-se..."

Um obrigado especial ao Alexandre Castro, que fez questão de vir de Genebra para acompanhar os primeiros kms, mesmo só tendo conseguido estar comigo de raspão, em Saint-Gervais! Não me vou esquecer!

Obrigado a toda a “Família” do Clube de Atletismo de Fafe. Um projecto nosso, que começou meio por brincadeira e tem já 2 finishers UTMB! E não queremos que fique por aqui!...

Um abraço especial aos 2 rapazes que, nos últimos tempos, têm sido os grandes companheiros das madrugadas de domingo: Daniel Costa e Eusébio Fernandes.

Obrigado a toda a malta da box Crossfit762 Fafe, mas principalmente os coachs Carlos Subtil e Tânia Ribeiro! Larguei os wods, mas não larguei a box!

Obrigado ao “coach motivacional”, Sr. Albino Freitas! Vai ficar desiludido quando eu lhe disser o tempo do Pau Capell! 

Obrigado ao Pedro Pinto e Fisioperform, que sempre me desenrascaram toda e qualquer mazela que me foi aparecendo!

E finalmente, um grande, grande obrigado à Runtreino e particularmente à Ester Sofia Alves. Vocês é que fizeram o trabalho todo, eu só tive que treinar e correr!! Depois de passar por tudo aquilo tenho a certeza: sem vocês, estava na lista dos 1000 que ficaram pelo caminho.

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