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segunda-feira, 8 de abril de 2019

OPINIÃO: Andar de bicicleta é o motivo, mas a causa é muito maior!

TEXTO: ISMAEL ALVES / FOTOS: DR

Alunos vão aprender a andar de bicicleta desde o 1.º Ciclo

"Todos os alunos terão a oportunidade de aprender a pedalar, num processo de formação faseado ao longo dos vários níveis de escolaridade", foi anunciado pelo ministério da educação e associado à Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa.

Anúncio que foi recebido de forma geral como algo positivo, apesar da incerteza no formato e contexto da sua aplicabilidade. No entanto, em alguns casos, a recetividade desta decisão foi tomada como vulgar. Alvo de comentários jocosos, irónicos, grosseiros e até, motivo de publicação de artigo de opinião por “doutores da especialidade”. Não vale tudo para agradar às massas que nos mantém à superfície e colocam “gostos” só porque sim. 

Não consigo ficar indiferente a publicações do género “Não há dinheiro para papel ou tonner, mas vai existir para bicicletas…”, confesso que inicialmente pensava que estavam a ironizar, mas as publicações que se seguiram sobre o mesmo assunto remetem para o sarcasmo. Demonstrando escassez de sensibilidade, desconhecimento sobre o assunto e desrespeito por todos os que já trabalham na Escolas nesta área. 

O meu entusiasmo consegue ultrapassar facilmente estas questões, mas por vezes é difícil compreender algumas opiniões.

“No atrasado Alentejo onde fui parido, pedalar era uma aprendizagem natural, assim houvesse um selim onde assentar o rabo. E porque sempre foi assim, de norte a sul, e assim deve continuar a ser, importa contraditar os avançados mentais da parolice curricular.”… “Enxerguem-se: há aprendizagens que devem ser feitas na família ou na sociedade e não na escola…” Santana Castilho, In “Público” de 3.4.19

Se é certo que no milénio passado quase tudo era aprendizagem natural, também é verdade que prevalecia a aprendizagem à base da estalada. Felizmente que só a aprendizagem natural se manteve, a instituição maior (Escola) evoluiu para servir de suporte a quem não tem todas as oportunidades que deveria ter. Se acompanhássemos o que o professor Santana Castilho refere como as aprendizagens que devem ser feitas na família e o que denomina de “avançados mentais da parolice curricular”, não se entende porque há necessidade de na disciplina de educação física, por exemplo, ser necessário trabalhar o atletismo. Se o meu avançado estado de parolice me permite, qualquer pai ou mãe sabe ensinar o/a filho/a a correr e a saltar! Sabemos que não é assim, como dizia o “Sr. Atletismo” Moniz Pereira, “há correr e saber correr… até para correr é preciso ter classe.” Não é preciso ser especialista em pedagogia para entender que “ensinar a pedalar” não vai pertencer ao currículo da Escola nem sequer vai ser criada qualquer disciplina, mas se fosse integrada na educação física não viria nenhum mal ao Mundo, ou será que somos todos avançados mentais da parolice.
“Todos os alunos terão a oportunidade de aprender a pedalar...” é apenas o mote para incrementar, valorizar, creditar e munir com recursos o que já está a ser realizado há muito tempo. No entanto, atualmente é essencial uma linha orientadora com a capacidade de implementar competências a desenvolver e trabalhar juntos com os mesmos propósitos num único projeto. Esta é para mim a questão crucial, não depender da vontade e interesses do diretor da Escola, da disponibilidade do professor ou de créditos horários atribuídos à Escola. 

Ao longo dos últimos anos fiz parte de alguns projetos relacionados com o uso da bicicleta, quase sempre associados ao Desporto Escolar e quando tal não era possível, colocávamos a criatividade ao nosso serviço. Recordo um diretor que não aceitou a criação do clube de BTT porque para ele, era uma atividade muito perigosa. Tudo se resolveu com um nome diferente “Clube de exploração da Natureza” no qual incluímos as caminhadas. Também recordo pessoas excecionais, diretores, professores, auxiliares, responsável pelas autarquias e juntas de freguesia e pais que na maioria das vezes ofereceram o seu tempo para contribuir para o sucesso das atividades realizadas. Apesar de tudo estar interligado o sucesso destes projetos não é avaliado pelos resultados escolares ou pelos resultados em competição, mas sim pela motivação que move as crianças e pela mudança de atitudes.

Desengane-se quem acha que este tipo de projetos é só “ensinar as crianças a pedalar”. Aprendi com o saudoso professor Orlando Lemos, fundador da ERDAL- Escola Referência Desporto Ar Livre, que andar de bicicleta é o motivo, mas a causa é muito maior. Não era por acaso que o professor Orlando fazia questão que os alunos de educação especial estivessem presentes em todas as atividades. 

Os professores que dão de si muito mais do que aquilo que o horário exige, sabem que qualquer atividade extracurricular é um desafio, mas também uma oportunidade de motivar e abrir os horizontes às nossas crianças. Poucos têm conhecimento que, não raras as vezes, as atividades dos Desporto Escolar são realizadas ao fim de semana ou em horários que se prolongam muito para além do horário de trabalho dos professores. No entanto, os professores continuam a aceitar esta demanda, porque acreditam e sentem que fazem a diferença.

Para desmistificar e ajudar a compreender o que é feito nestes projetos, para além de “ensinar a pedalar”, menciono o Clube de BTT da Escola de Aver-O-Mar. Um dos que me deu maior regozijo, não só por fazer parte da sua criação, mas por saber que passado mais de uma década continua a ser um marco importante na formação dos alunos e reconhecido na comunidade. Nas horas atribuídas ao denominado “ensinar a pedalar”, os professores trabalham a técnica de equilíbrio, de travagem, utilização das velocidades, trajetórias, antecipar obstáculos, posição corporal e outras pormenores de caráter mais técnico. Paralelamente desenvolvem-se atividades intrínsecas, complementares e essenciais para a aprendizagem global, tais como:

- oficina de manutenção com ferramentas e assim instruir nos alunos a mecânica básica para bicicleta; 

- realização de workshops e pequenas formações sobre vários temas de ciclismo, importância da alimentação saudável e hidratação, segurança rodoviária e a importância do uso do capacete; 

- proporcionar o contacto e partilha com atletas, treinadores e mecânicos ligados ao ciclismo; 

- participar em vários encontros do Desporto Escola com ou sem caracter competitivo;

Obviamente é de fácil compreensão quando o ministério faz referência à medida com o título “Aprender a andar de bicicleta…”, muito mais está associado a esta iniciativa. Com todas as crianças do 1º ciclo a aprender desde cedo a andar de bicicleta com confiança e em segurança, podemos pensar na continuidade e incutir nos jovens o uso da bicicleta como opção nas suas deslocações, mas de forma responsável e consciente do uso partilhado do espaço público, bem como o respeito mútuo entre automobilistas e ciclistas. Se assim for, acredito que as próximas gerações estarão mais informadas e sensibilizadas da importância do seu desempenho na sociedade.

Por outro lado, apesar de não ser um objetivo principal, é gratificante constatar que existem alunos a enveredar pelo ciclismo como desporto de eleição. Já são bastantes os casos de alunos que deram as primeiras pedaladas na Escola e estão hoje a representar equipas de ciclismo a nível nacional e internacional.

Depois de quase quinze anos a ensinar o gosto pela bicicleta, a sua utilização segura e responsável, sinto que chegou o momento de aproveitar esta boleia. O tempo das mentalidades abertas para o inevitável, para o sustentável e para o saudável está desperta na capacidade de nossas crianças. 

Boas pedaladas!

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